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17 agosto 2016

Espelho Escuro - Ensaio sobre a privacidade nos tempos das câmeras de celular


Em meados do século XX o escritor britânico George Orwell imaginou um mundo onde um Estado totalitário vigiava continuamente cada um de seus cidadãos. "Big Brother is watching you"[1], alertavam os avisos que não deixavam esquecer que em cada esquina, cada edifício, cada corredor e cômodo havia uma câmera de vídeo a indiscretamente observar.
A privacidade não era permitida ao cidadão. Li o romance um ano antes da fatídica data que dá nome ao livro. Lembro que tive a sensação de que esse mundo de plena vigilância seria virtualmente impossível. "As pessoas nunca aceitariam tal invasão de privacidade", pensava. Com efeito, o mundo do século XXI não é como o imaginado no romance 1984. Embora possamos encontrar alguns lugares onde a realidade pareça imitar a distopia de Orwell, na grande maioria das sociedades a privacidade é vista como um direito individual a ser protegido contra a vontade de controle do Estado. Mas as câmeras que eram raras na época de George Orwell são hoje onipresentes na vida social. Seja no show de música, no restaurante ou no bar, seja na faculdade ou no escritório, na casa noturna ou na festa de aniversário, no casamento do colega ou no jantar familiar na casa da avó, sempre há dezenas de câmeras a registrar os acontecimentos.

O advento das câmeras fotográficas digitais e, em especial, embutidas nos celulares provocou uma significativa mudança na forma como lidamos com o direito do outro de escolher quando e por quem será fotografado. A selfie se transformou numa obsessão, de modo que nenhum momento particular parece bem desfrutado se não for registrado e publicamente compartilhado. Fotos adicionais do local e de pessoas, devidamente marcadas com informações de localização geográfica, frequentemente acompanham esses auto retratos, contextualizando o momento desfrutado. Sem nos darmos conta, estamos tornando públicas nossas vidas privadas e junto arrastando a privacidade de outros para as redes sociais. Quanto mais liberdade temos de gravar e publicar o que acontece a nossa volta, menos controle temos sobre o que os outros gravam quando nós estamos a sua volta. Como no mundo de 1984, cada vez mais estamos submetidos a uma vigilância que invade nossas vidas sem nos pedir permissão. Essa vigilância não vem do Estado, mas das câmeras do seu amigo, do seu vizinho ou do amigo do seu amigo. O Grande Irmão, que indiscretamente te observa e registra sua intimidade, não é um agente de alguma polícia secreta, mas qualquer pessoa que, de qualquer lugar do mundo, descobre onde você está e o que faz simplesmente acessando o Facebook ou o Instagram de um amigo de seu amigo.

Até a década de 80, usar filmadora num casamento sem autorização poderia ser visto como uma indiscrição, até mesmo invasão de privacidade. Tornar públicas fotos de um jantar na casa de alguém sem seu consentimento seria uma quebra de confiança. Se antes não se levava câmeras fotográficas a eventos sociais de pessoas com quem não se tivesse intimidade, hoje é tido como normal portar e usar um celular com câmera para onde quer que se vá. As fotos ou filmes que são feitas com esses aparelhos cada vez mais dizem respeito ao direito de memória do indivíduo, que escolherá o que vai tornar público. Embora ainda existam lugares onde as fotografias sejam proibidas, mesmo em cinemas e teatros as selfies são cada vez mais toleradas, como se o indivíduo sempre tivesse o direito de registrar o que está fazendo, mesmo que, colateralmente, acabe por registrar a presença e as ações de outros. Considerando que a tecnologia de captura de imagens e filmes se torna cada ano mais portátil e as pessoas se sentem cada vez a vontade para gravar o que acontece a sua volta, aonde poderemos chegar com isso no futuro?

 O episódio The Entire History of You[2]da série britânica Black Mirror arriscou um palpite. Em breve teremos chips de memória do tamanho de grãos de arroz que, implantados sob nossa pele, serão capazes de armazenar dezenas de anos de vídeo. Receptores de imagens estarão em lentes de contato, permitindo que se grave vídeo diretamente do olhar. No futuro, as câmeras de vídeo poderão migrar dos celulares para o nosso próprio corpo. Nesse mundo, todo olhar será indiscreto. Se hoje não nos intimidamos em sacar o celular para filmar e fotografar o que acontece a nossa volta, o que nos impedirá usar um equipamento desses em nosso corpo? Seria uma garantia de nunca mais esquecermos nada, pois cada detalhe de nossas vidas estaria registrado, sempre acessíveis para serem assistidos novamente. Ou publicados. Mas o que dizer sobre o direito do outro à privacidade? Mais ainda: o que dizer sobre o nosso próprio direito ao esquecimento?

 No romance de George Orwell o protagonista Winston encontra um modo de escapar à vigilância do Grande Irmão e ter seus encontros românticos com Júlia. Como as câmeras eram fixadas em postes e paredes, era uma questão de encontrar pontos cegos. Mas onde há pontos cegos quando as câmeras são móveis e seguem você? No episódio de Black Mirror, o registro de tudo o que acontece durante as vidas das pessoas causava constrangimentos e alimentava crises, na medida em perdia-se o direito ao esquecimento ou à privacidade de segredos íntimos. Como construir relações sociais duradouras quando nenhum erro pode ser esquecido e nenhum pecado pode ser perdoado?

Notas:
[1] Tradução: O Grande Irmão observa você.
[2] Black Mirror é uma série de televisão britânica criada por Charlie Brooker e produzida pela Zeppotron para a Endemol. Charlie Brooker explicou o título da série ao The Guardian dizendo que "se a tecnologia é uma droga - e parece mesmo ser uma - então quais são precisamente os efeitos colaterais? Este espaço - entre apreciação e desconforto - é onde Black Mirror [...] está localizada. O 'espelho negro' do título é um que você encontrará em todas as paredes, em todas as mesas, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, um monitor, um Smartphone". Em 2013 Robert Downey Jr. escolheu o episódio The Entire History of You para, potencialmente, ser transformado num filme pela Warner Bros. e sua própria produtora, a Team Downey.

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