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08 outubro 2016

Kaló Bíblia: Liberdade de pensamento


"É imperioso que se garanta a liberdade de julgamento, para que as pessoas possam conviver em harmonia, por mais diversas ou mesmo francamente contraditórias que possam ser suas opiniões" (Leg 5:2-3)



Filósofo e matemático renascentista do século XVII, René Descartes chegou a afirmar que "o bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que têm". Com boa dose de sarcasmo, Descartes constatou que cada um acredita entender da melhor forma possível, de modo que, em geral, se incomoda quando outros tentam lhe modificar opiniões. Em outras palavras, por mais errados que possamos estar, raramente permitimos que outros nos corrijam. Menos ainda permitimos que outros nos digam como devemos pensar, agir ou julgar. Essa resistência à ideias estranhas às nossas mentes pode ser boa na medida em que nos protege de manipulações e mentiras. Se não entendemos o fundamento e a lógica da ideia, pode ser que seja uma ideia ruim. Mas essa disposição em recusar novas ideias só é boa como atitude preliminar, atitude inicial, diante de uma ideia que ainda merece uma reflexão mais profunda. Insistir obstinadamente na recusa de considerar novas ideias pode ser ruim, pois nos impede de aprender coisas novas e melhorar nossos conhecimentos sobre o mundo. A frase de Descartes é sobre a resistência que a maioria das pessoas tem para admitir que seu bom senso possa ser, afinal, não tão bom quanto lhe parece.

"Cada qual tem seu próprio entendimento e a mente varia como o palato" (Leg 1:18)

Por outro lado, pensar livremente é um direito fundamental. Sob a perspectiva de todo o Universo e dos mais de 13 bilhões de anos que nos separa da Origem, a opinião de um grande cientista, de um erudito intelectual, de um popular líder político ou de um reverenciado pontífice religioso não é mais relevante que a opinião de qualquer outro ser humano. A ninguém deveria ser dado o poder de se impor perante os demais, conformando e domesticando mentes. Ainda que concordemos que determinadas técnicas de pesquisa e reflexão sejam mais adequadas que outras para se buscar a verdade, ainda assim cada ser humano tem o direito a permanecer com seus próprios pensamentos se assim desejar, não provocando danos a outros. Mas a verdade é que mesmo quando esse poder de manipular ideias se manifesta, mesmo quando uma autoridade se impõe na forma de pregador, doutrinador ou governante, felizmente não é possível controlar completamente todas as mentes, visto que, justamente por causa da diversidade, uns são mais susceptíveis que outros. É nesse sentido que o Bom Livro ensina que, apesar do que tentam fazer "os proselitistas, demagogos e mestres dos jovens e dos crédulos, os quais usam sua autoridade para incutir nos outros suas próprias crenças e ideias", "por ilimitado que possa ser o poder do soberano, não pode impedir que as pessoas formem julgamentos segundo seu próprio intelecto ou sob a influência de suas emoções". E conclui: "o objetivo do governo não é transformar as pessoas de seres racionais em animais ou marionetes, e sim possibilitar que se desenvolvam em segurança e empreguem sua razão sem empecilhos"  (Leg 1:15-16.25.32-33).

A convivência de pessoas com diferentes opiniões e formas de julgar é consequência natural da diversidade das mentes e corolário necessário do direito fundamental ao livre pensamento. Evidentemente, é desejável que as pessoas prestem atenção à ácida observação de Descartes e permaneçam sempre vigilantes, criticando seus pensamentos e buscando o aperfeiçoamento interior. Mas o fato de alguns resistirem à autocrítica e ao aprendizado, ou mesmo de não terem condições para isso, não pode ser motivo para que autoridades se imponham com a missão de definir o que é melhor e o que é bom para os outros. Qualquer pessoa, ideologia, credo ou doutrina que pregue uma homogeneização de comportamentos e pensamentos, dividindo a humanidade genericamente em bons e maus, nós e eles, salvos e condenados é inimiga da humanidade e causa sofrimento. "É imperioso que se garanta a liberdade de julgamento, para que as pessoas possam conviver em harmonia, por mais diversas ou mesmo francamente contraditórias que possam ser suas opiniões" (Leg 5:2-3).


Marco Paulo Bernardino

Este texto faz parte da série Kaló Bíblia, por Marco Paulo Bernardino

Referência:
GRAYLING, A. C. O Bom Livro - Uma Bíblia Laica. Ed. Objetiva





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