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19 janeiro 2015

Liberdade de Expressão, o Papa e o atentado ao Charlie Hebdo

“É verdade que não se pode reagir violentamente, mas se Gasbarri [Alberto Gasbarri, que acompanhava o papa], grande amigo, diz uma palavra feia sobre minha mãe, pode esperar um murro. É normal!”
O direito à liberdade de expressão universalmente garantido em lei é uma conquista relativamente recente na humanidade e percorreu uma longa trajetória histórica até ser plenamente reconhecido como inerente à dignidade humana. Nunca esteve plenamente assegurado e ainda hoje se encontra, por diversos meios, ameaçado. Terroristas religiosos representam a ameaça mais evidente e violenta, mas não a mais efetiva. Seus maiores inimigos estão entre as nações democráticas e se contam dentre os que se intitulam seus defensores.

Ao contrário do que possa parecer, idealmente não deveria haver limites à liberdade de expressão. Somente a responsabilização. Nas sociedades humanas,
onde ninguém é mais qualificado que qualquer outro para definir o que pode ou não ser dito, nenhum limite prévio é aceitável. Nem mesmo a mais absoluta maioria pode impor à minoria os limites de sua manifestação. Nas palavras de Stuart Mill,
"se todos os homens menos um fossem de certa opinião, e um único da opinião contrária, a humanidade não teria mais direito a impor silêncio a esse um, do que ele a fazer calar a humanidade, se tivesse esse poder" (p. 43). Isso por que não podemos negar "que os homens não são infalíveis; que as suas verdades, pela maior parte, são meias verdades; que a unidade de opinião, a não ser quando resulta de se compararem, da forma mais ampla e livre, opiniões opostas, não é desejável, nem a diversidade constitui mal, e sim um bem" (MILL, p. 103).
Numa oposição de opiniões, todas têm o mesmo valor, mesmo que o dono da opinião a considere absolutamente melhor e infalível; mesmo que o dono da opinião se ache portador de algum tipo de mandato divino.

Todas as democracias impõe certos limites à liberdade de expressão. Na maioria delas, por exemplo, é um abuso, punível pela lei, difundir e incitar atitudes criminosas. Entretanto, qualquer limitação à liberdade de opinião e expressão é indesejável, só se justificando socialmente quando o que está em jogo é a própria liberdade, a democracia e a coesão social. O próprio Stuart Mill, defensor da mais irrestrita livre expressão, reconheceu que “opiniões perdem sua imunidade quando [...] sua expressão constituiu uma instigação positiva para algum ato danoso” (MILL, p. 102). Ainda assim, essa limitação deve ser a menor possível.

Entretanto, liberdade não se confunde com irresponsabilidade, muito menos com impunidade. Se não deve haver limitação prévia à liberdade de expressão (censura), sempre deve haver responsabilidade. Quem manifesta sua opinião é responsável pelos efeitos que ela produz em outros e na sociedade, na proporção da diferença de poder entre uns e outros. Tzvetan Todorov, que defende a democracia de um ponto de vista distinto de Stuart Mill, tendo chegado a qualificar a exacerbada liberdade individual do neoliberalismo como "tirania do indivíduo", também não defende a censura. Segundo ele,
"estabelecer limites à liberdade de expressão não significa solicitar a instauração da censura. Trata-se antes de apelar para a responsabilidade dos que têm o poder de difundir informações e opiniões. Responsabilidade que aumenta com o poder de que se dispõe, e que deveria suscitar um comedimento proporcional. [... A] liberdade de expressão deve sofrer tanto menos exceções quanto mais fraco for o poder de que se dispõe, pois constitui então um contrapoder; deve ser examinada tanto mais atentamente quanto maior for a posição de força já ocupada pelos que a invocam, pois nesse caso ela ameaça acarretar um abuso de poder" (TODOROV, pos. 1997).
Em qualquer caso, sob a ótica liberal de Stuart Mill ou social de Tzvetan Todorov, a conclusão será sempre a mesma: cabe somente à lei demarcar exceções à liberdade de expressão, sem censura, e ao judiciário responsabilizar pelos abusos ou danos decorrentes de seu uso. Ninguém mais tem esse poder na democracia.

O que dizer, então, da declaração do papa, no dia 15 de janeiro, em referência ao atentado terrorista do último dia 7, que vitimou 12 pessoas no edifício do jornal satírico francês Charlie Hebdo? Francisco I disse que "há limites para a liberdade de expressão". Se o papa se refere às limitações impostas pela lei está, como se costuma dizer, fazendo chover no molhado. Não precisamos que qualquer autoridade nos lembre que existem limites legais para a liberdade de expressão. A não ser, então, que seu pronunciamento tenha sido direcionado aos terroristas que, talvez por não saberem que poderiam ter entrado com uma ação nos tribunais franceses para discutirem se o jornal pode ou não fazer piadas com Maomé, resolveram vingar o profeta com as próprias mãos. Mas sabemos bem que não foi o que o papa quis dizer.

O pontífice católico disse que há coisas que não podemos falar, opiniões que não podemos expressar, piadas que não podemos fazer. Podemos ridicularizar a rainha da Inglaterra, podemos fazer charges com o presidente Obama e podemos contar piadas de português (podemos, mas eu e minha família não gostamos). Mas não podemos fazer piadas com profetas e deuses (ou com ditadores da Coreia do Norte). Para o papa, assim como para os terroristas islâmicos, a religião está acima da liberdade de expressão e de qualquer tribunal terreno.

Na mesma entrevista, o papa disse que "ambos são direitos humanos fundamentais: tanto a liberdade religiosa quanto a liberdade de expressão". É claro que a democracia deve reconhecer as duas liberdades como legítimas, até por que, em última instância, a liberdade de religião não é mais que uma forma de liberdade de opinião e de expressão. Com efeito, para uns Deus é Alá, para outros Deus é Jesus, e para outros, ainda, Deus é uma ilusão. São opiniões e todas devem ser toleradas. O ateu não tem menos direito de dizer que Maomé é assassino que o muçulmano tem de dizer que ateus vão para o inferno. E um pontífice religioso não tem mais direito de definir quais os limites do direito de expressão que os legisladores e os juízes de um estado democrático soberano. Nenhuma religião está acima da lei ou dos direitos humanos fundamentais e todas devem estar sujeitas ao escrutínio da razão, do humor e do debate, como qualquer outro assunto. Até por que, perante a lei, nenhuma religião deve ser melhor ou "mais verdadeira" que qualquer outro sistema de crenças. Ocorre que o crente costuma estar tão certo da existência de seu Deus que, frequentemente, se esquece que sua fé, por maior que seja, perante os outros não é mais que opinião.

Mas a declaração mais polêmica de Francisco I foi a seguinte:
"É verdade que não se pode reagir violentamente, mas se Gasbarri [Alberto Gasbarri, que acompanhava o papa], grande amigo, diz uma palavra feia sobre minha mãe, pode esperar um murro. É normal!" (Francisco I)
Em outras palavras, para o pontífice existe uma relação de causa e feito entre o exercício da liberdade de expressão do Charlie Hebdo e o atentado terrorista sofrido por seus cartunistas. Visto dessa forma, as vítimas também são culpadas pelo atentado. Assim como uma mulher é culpada pelo estupro quando se maquia e se veste com roupas sensuais, o que poderia ser irresistivelmente insinuante para certos tipos de homens, também os cartunistas do Charlie Hebdo sofreram a consequência por terem passado dos limites (que religiosos fundamentalistas querem impor à liberdade de expressão dos outros).

Reconheço que estou sendo sarcástico (como geralmente sou), mas não vejo como dizer diferente. Raciocínios como este, no estilo "não sou a favor da violência, mas...", frequentemente escondem a ideia de que a vítima fez por merecer a agressão. Ou, ainda, que o que acontecer de mal com alguém que "feriu a moral" ou "exagerou em sua liberdade e expressão" é um castigo merecido de Deus. E é exatamente o que o papa disse: "Você não pode provocar e insultar a fé dos outros, você não pode zombar da fé. Não se pode fazer das religiões dos outros um brinquedo. Essas pessoas provocam e algo pode acontecer." Não há o que explicar nessa declaração, nem há dúvida quanto a sua interpretação. Qualquer um que quisesse manifestar repúdio ao atentado terrorista sem deixar qualquer margem para outra interpretação diria que abomina a violência e o terrorismo e só. Ponto. Sem nenhum "mas".

Em que pese o porta-voz do papa ter minimizado no dia seguinte essa declaração, enfatizando que em nenhum momento tais declarações poderiam ser interpretadas como concordância com a violência, fato é que elas demonstram uma mentalidade que permeia todas as religiões monoteístas abraâmicas: "negue o meu Deus, zombe dele, e você sofrerá as consequências!" Não é só o papa que pensa assim, mas toda a Igreja Católica e as religiões monoteístas abraâmicas em geral, tais como o catolicismo ortodoxo, cristianismo protestante, judaísmo e, já sabemos a custa de explosões e mortes de inocentes, o islamismo. Todos repetem a mesma lógica. Basta abrir o Facebook e ver a quantidade imensa de pessoas que "curtiram" as centenas de imagens publicadas em apoio ao papa com a frase "há limites para a liberdade de expressão" para confirmar o que digo. Ou ainda, digite na barra de procura do Google a frase "com Deus não se zomba" e veja o resultado.

A verdade é que a liberdade de expressão não nos foi dada por nenhuma religião monoteísta, muito menos caiu dos céus, mas conquistada a custa de lutas políticas, movimentos civis, revoluções e educação, embasados em trabalhos feitos por pensadores e filósofos, na sua maioria, humanistas. As maiores conquistas humanas, que tornam a vida contemporânea mais satisfatória, produtiva e longeva, não foram o resultado de 1000 anos de religiosidade medieval, mas de 400 anos de ciência e filosofia iluminista e moderna. Não se trata de concordar ou endossar o humor e as opiniões do Charlie Hebdo, mas de lutar contra qualquer tipo de violência que tente silenciar uma opinião, seja ela qual for. Portanto, mesmo que não concordemos com a linha editoria do jornal, temos a obrigação de lutar pelo direito desse jornal e de qualquer outro continuar a publicar com liberdade. E quando qualquer um realmente infringir um limite legalmente definido para a liberdade de expressão caberá ao judiciário, não a um grupo de religiosos radicais, por meio do devido processo legal punir com a lei, não com bombas e terror.

Por fim, deixo para o leitor uma estória que mostra que atentado ao Charlie Hebdo pode ser plenamente justificado biblicamente: "Os habitantes da cidade disseram a Eliseu: A cidade está muito bem situada, como o pode ver o meu senhor, mas as águas são más e tornam a terra estéril. Eliseu disse-lhes: Trazei-me um prato novo, e ponde nele sal. Eles lho trouxeram. Eliseu foi à fonte e deitou sal nela, dizendo: Eis o que diz o Senhor: Sanei estas águas, e elas não causarão mais nem morte, nem esterilidade. Ficaram as águas sadias e ainda o são, segundo a palavra que o Senhor tinha dito por Eliseu. Dali subiu a Betel. Enquanto ia pelo caminho, saíram da cidade alguns rapazes, e puseram-se a zombar dele, dizendo: 'Sobe, careca; sobe, careca!' Eliseu, voltando-se para eles, olhou-os e amaldiçoou-os em nome do Senhor. Imediatamente saíram da floresta dois ursos e despedaçaram quarenta e dois daqueles rapazes. Dali se retirou para o monte Carmelo, de onde voltou para Samaria" (II Reis 2: 19-25).

REFERÊNCIAS
MILL, John Stuart. Ensaio sobre a liberdade.
TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. Versão digital.

SITES INTERESSANTES A CONSULTAR
Bíblia: http://www.claret.com.br/biblia/12/II-REIS/2
Liberdade de Expressão na Imprensa: http://www.brasa.org/Documents/BRASA_IX/Guilherme-Canela.pdf
Notícia da Declaração do Papa no Globo: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/liberdade-de-expressao-nao-da-o-direito-de-insultar-o-proximo-diz-papa.html
Notícia da Declaração do Papa no Último Segundo: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-01-15/ha-limites-para-liberdade-de-expressao-diz-papa-francisco.html
Dr. Dráusio Varella sobre as Vítimas de Estupro: http://drauziovarella.com.br/mulher-2/a-culpa-e-sempre-dela/
Notícia da Declaração do porta-voz do Papa na Veja: http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/vaticano-tenta-explicar-declaracao-papal-sobre-liberdade-de-expressao
Livros sobre Democracia e Liberdade de Expressão: http://escoladeredes.net/group/biblioteca-da-democracia

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