Em outubro de 2014, num pronunciamento na Pontifícia Academia de Ciências, o papa Francisco I declarou que as teorias do Big Bang e da Evolução das Espécies não contradizem a fé cristã e a crença na criação divina. Para o pontífice católico, “o início do mundo não é obra do caos, deriva diretamente de um princípio supremo que cria por amor. O Big Bang, que hoje se coloca na origem do mundo, não contradiz a intervenção do criador divino, mas o exige. A evolução na natureza não contrasta com a noção de criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que se evoluem”. Essa declaração, noticiada com alguma importância pela mídia, causou grande impacto nos meios religiosos ocidentais, sobretudo nos meios cristãos mais fundamentalistas. Para alguns, o Papa está abrindo o Catolicismo para o futuro, arejando a cosmogonia tradicional cristã e buscando alinhar sua teologia com os últimos (e consistentes) avanços da cosmologia e da biologia evolutiva. Para outros, o Papa estaria traindo o cristianismo e a Bíblia Sagrada, fazendo concessões para o materialismo científico e ateísmo, que se recusam a crer numa criação divina. Entretanto, haveria outra forma de interpretar essa declaração do líder máximo do Catolicismo Romano, que certamente não veio por acaso?
Primeiramente precisamos reconhecer
que a Igreja Católica hodierna tem uma postura significativamente diferente da que tinha há 5 séculos. No tempo de Giordano Bruno e de Galileu Galilei (séc. XVI e XVII) a Igreja detinha grande poder político e impunha sua visão de mundo pela argumentação religiosa e, na ineficácia desta, pela autoridade jurídica e violência. Em que se pesem argumentos sobre a maior ou menor interferência da Igreja em diferentes estados e épocas, e sobre o uso político que autoridades políticas fizeram da Santa Inquisição para perseguirem, roubarem e silenciarem desafetos, fato é que hoje a Igreja tem poucas opções a sua disposição tão efetivas quanto o convencimento por argumentos ou pregações. Por outro lado, os séculos XIX e XX assistiram a grandes feitos da ciência e da tecnologia em diversas áreas do conhecimento, tais como na engenharia, medicina, biologia e física. Tudo isso tem convencido grande parte das pessoas, se não acerca da superioridade do método científico sobre a argumentação teológica, ao menos da grande utilidade e eficiência da ciência para o desenvolvimento e bem estar humano.
Como instituição milenar que é, a Igreja reconhece que a argumentação teológica, quando em conflito com o conhecimento científico, a levou a situações que, em retrospecto, hoje lhe são embaraçosas. Se assim não fosse, o papa João Paulo II não teria proferido tantos pedidos de desculpa como fez, um dos principais a respeito de Galileu Galilei, em 2000. Não se trata, entretanto, de confessar que a argumentação teológica seja estéril ou inútil, mas de reconhecer que, do estudo das Sagradas Escrituras, variadas interpretações e conclusões são possíveis e que não tem sido uma boa técnica decidir por qualquer das possíveis interpretações sem antes ouvir o que a natureza e a realidade tem a dizer. Para dar exemplos de situações em que a argumentação teológica desvinculada dos fatos naturais levou a conclusões hoje inconciliáveis com a realidade (e até com o bom senso), temos as histórias dos dois personagens citados.
Muitos vão dizer que, em fevereiro de 1600, Giordano Bruno não ardeu na fogueira por seus ensinamentos científicos. Que foi um caso de heresia. E, de certa forma, isso é verdade. Mas, num mundo onde demônios e anjos se escondiam por trás de cada acontecimento da vida diária e de cada pensamento humano, em que cada assunto, desde o mais público até o mais íntimo, era do interesse da doutrina da Igreja, não existia (ou, ao menos, não era clara) a separação entre fé e ciência. Tudo era questão de fé. Prova disso é que na lista de acusações contra Giordano Bruno, ao menos uma tinha caráter eminentemente científico: "reivindicar a existência de uma pluralidade de mundos e suas eternidades". Nesse caso, Giordano ensinava que o Universo é infinito e que poderiam existir outros mundos como o nosso, ou seja, outros sóis e outras terras. Embora a argumentação teológica dos dias atuais comporte essa possibilidade, na época ela era estranha demais para as pessoas em geral e blasfêmica para a Igreja. Com efeito, se a infinitude é um atributo divino, só Deus poderia ser infinito. Considerar o Universo como infinito seria igualar a criação ao criador. Além do mais, afirmar que haveria "outros mundos" era equivalente a dizer que o homem não é tão especial na criação. Hoje temos bons motivos para acreditar que o Universo é infinito e já está muito bem provado que ele está cheio de estrelas com planetas a seu redor, alguns deles, provavelmente, semelhantes ao nosso.
Não chegaram a acender a fogueira para Galileu Galilei, até por que ele tinha amigos na hierarquia eclesiástica e contava com o respeito do Papa, mas seu grande intelecto foi silenciado em junho de 1633 por uma condenação à prisão domiciliar e censura de seus livros, o que lhe causou grande sofrimento. Galileu Galilei era integrante dessa mesma Pontifícia Academia de Ciências onde o papa Francisco I se pronunciou, o que confere maior significado a seu ato. O caso de Galileu Galilei ensinou a Igreja a ser mais cautelosa acerca do que declara em suas incursões nos domínios da ciência, coisa que, aparentemente, muitas denominações evangélicas (para ficar somente no fundamentalismo cristão) ainda não aprenderam. Vale a pena conhecer essa história, que tem muitos paralelos com o atual debate entre criacionistas e evolucionistas e nos dá elementos para interpretar os motivos da declaração do papa Francisco.
As observações que fez com o então recém inventado telescópio o levou a descobrir novos planetas, luas e detalhes do Sol. Esse estudo, aliado a sua habilidade matemática, que lhe permitiu explicar melhor os padrões dos movimentos dos corpos celestes, convenceram Galileu Galilei da realidade da Teoria Heliocêntrica. Em livro publicado em 1543, Copérnico já havia defendido essa hipótese, mais tarde corrigida e aprofundada por Johannes Kepler (em 1596), mas foi Galileu o primeiro a apresentar as provas científicas do Heliocentrismo. Até então, e ainda por muitos anos depois, aconteceu um acalorado debate entre o que poderíamos chamar de heliocentristas e geocentristas. Os primeiros, baseados nos trabalhos de Kepler e Galileu, defendiam que a matemática heliocêntrica explicava muito bem os movimentos dos planetas, o movimento da lua, os equinócios e as estações do ano, fenômenos que os modelos geocêntricos falhavam em explicar. Além do mais, se pequenas luas podiam orbitar outros planetas (e não a Terra), não haveria por que supor que a Terra não pudesse também orbitar o Sol, que é maior.
Os geocentristas, por outro lado, tinham como argumentos a favor de sua visão de mundo a autoridade de Aristóteles e Ptolomeu (que foram geocentristas), o ensinamento da Bíblia que em algumas passagens fala do "movimento" do Sol no céu e a noção, segundo a qual, se a Terra se movesse em alta velocidade em volta do Sol deixaria para trás os pássaros e as nuvens, que se perderiam no éter do espaço. O primeiro argumento era um claro apelo à autoridade, o segundo um literalismo bíblico (hoje rejeitado pela maioria dos cristãos) e o terceiro foi refutado pelo próprio Galileu, na experiência da pedra que cai de um mastro de navio (depois, foi definitivamente enterrado pela Teoria da Gravitação de Issac Newton, em 1684) [1]. Outro argumento contra as descobertas de Galileu era que o que ele pensava ser luas orbitando outros planetas na verdade eram manchas ou distorções, causadas por falhas nas lentes de seu telescópio (ou seja, ele não estaria fazendo a pesquisa do jeito certo). Mas é inegável que o principal motivo que levava muitos a combaterem o Heliocentrismo de Galileu era a dificuldade de acomodar essa cosmovisão com as interpretações bíblicas e linhas teológicas da época.
Numa posição mais conciliatória estava Joahannes Kepler, que defendia um Heliocentrismo que tentava se legitimar também por argumentações teológicas. Seus avanços na busca de relações matemáticas para os movimentos dos corpos celestes, que posteriormente apoiaram os trabalhos de Galileu e de Issac Newton, são inestimáveis, mas sua religiosidade o levou a argumentar que o sistema solar refletiria as relações da Santíssima Trindade, com o Sol atuando como Deus Pai, a Abóbada Celeste como o Deus Filho e o espaço entre os dois como o Deus Espírito Santo. Aparentemente, sua teologia não encontrou repercussão significativa na Igreja Católica em defesa do Heliocentrismo. Mas Kepler foi um exemplo de como sempre existirá um jeito para a teologia se ajustar à realidade dos fatos.
Por fim, o papa Urbano VIII, que antes de ser pontífice já havia sido testemunha de defesa de Galileu em 1616, o condenou em 1633. Segundo o pontífice, não havia provas reais do Heliocentrismo e este só poderia ser considerado como mera hipótese ou como instrumento matemático. A Igreja Católica chegou a declarar, também, que o Heliocentrismo só poderia ser ensinado se em igualdade de condições para com o Geocentrismo. O fato era que Urbano VIII simpatizava com as ideias de Galileu, mas não quis abrir mão da defesa do Geocentrismo bíblico. Isso custou caro para a imagem da Igreja nos séculos posteriores. Uma lição que os atuais criacionistas deveriam considerar.
Hoje, poucos criacionistas defendem o Geocentrismo (mas, pasme-se, eles ainda existem). Séculos de evolução na física e na cosmologia, sem falar nas viagens espaciais e nas imagens obtidas por satélites, enterraram qualquer possibilidade séria de se defender que o Universo gire em volta da Terra. Mesmo que se argumente que Albert Einstein postulou a relatividade dos referenciais, o que nos permitiria escrever equações que descrevam todo o Universo girando em torno da Terra, a complexidade gigantesca de tais equações, frente à simplicidade de equações que tenham o Sol ou a Via Láctea como referencial, mostram a inutilidade do Geocentrismo. Sem falar na radiação cósmica de fundo, cujas imagens, depois de considerados os efeitos Doppler causados pelos movimentos da Terra, do sistema solar, da Via Láctea e de nosso Grupo local, demonstram que nem mesmo nossa galáxia pode ser considerada o centro do Universo [2].
A Pontifícia Academia de Ciências é uma instituição do Vaticano, fundada em 1603, que congrega alguns dos mais importantes cientistas do mundo. Segundo o que relatam seus membros, muitos deles não católicos ou ateus, o clero não costuma interferir em seus trabalhos. Por meio dessa Academia, o Vaticano acompanha de perto os avanços científicos, podendo propor análises sobre diversos temas que possam refletir na religião, tais como questões da determinação do momento exato da morte ou da vida do ser humano e, é claro, da origem do Universo e da vida na Terra. Não seria de se estranhar que a declaração de Francisco I tivesse sido precedida de consultas à Academia acerca do quão certos estão os cientistas sobre as teorias do Big Bang e da Evolução das Espécies, seguidas de consultas a teólogos e bispos sobre como acolher na teologia e na interpretação bíblica essas teorias.
Alguns críticos da Igreja alegaram que a declaração do Papa veio para que sua Instituição fique bem perante a opinião pública. Mas não acho que seja o caso. Se o Papa estivesse preocupado com a opinião pública, consideraria mais seriamente assuntos como divórcio, métodos contraceptivos, homossexualidade e outros assuntos, que pesam muito mais na decisão dos que se afastam da Igreja Católica. Na verdade, as teorias do Big Bang e da Evolução não pesam em nada na decisão do fiel comum em permanecer ou não no catolicismo, não mais que aqueles assuntos. Mas, com essa declaração, o Papa está de olho no futuro. A Igreja Católica tem acompanhado de perto esses estudos científicos e, ao contrário do que muito cristão fundamentalista gosta de acreditar, as teorias do Big Bang e da Evolução estão sim muito bem fundamentadas e contam com "toneladas" de evidências e provas, e a Igreja Católica não pretende de novo cometer o mesmo erro que já cometeu.
Pelo bem da "infalibilidade papal", desta vez o Vaticano pretende estar do lado certo do debate e, antes de dar a resposta que vale um milhão, perguntou para os universitários.
NOTAS
[1] Galileu mostrou que quando se larga uma pedra do alto do mastro de um navio em movimento ela cai em linha reta vertical para quem observa de dentro do navio, mas, para quem observa da praia, cai em curva parabólica, acompanhando o movimento do navio.
[2] A radiação cósmica de fundo em micro-ondas é a "luz" (radiação eletromagnética) remanescente do Universo quando tinha aproximadamente 380.000 anos e está uniformemente espalhada por todo o espaço com um comprimento de onda aproximadamente constante; quando a captamos de todas as direções, formando um mapa, entretanto, ela aparenta ter comprimentos de onda que variam consideravelmente conforme a região observada. Assim como ouvimos o som de um carro mais agudo quando se aproxima e mais grave quando se afasta (efeito Doppler), captamos a radiação cósmica de fundo com variações de comprimentos de onda devido aos movimentos da Terra, do sistema solar, da Via Láctea e de nosso Grupo Local de galáxias. Ao descontarmos esses efeitos nas medidas corretas, o mapa de radiação cósmica de fundo se torna homogêneo, comprovando que todo o nosso Grupo Local de galáxias se move e a Terra, definitivamente, não é o centro do Universo.
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