Esta semana o STJ decidiu que a lei que equipara a prática de atividade sexual, consentida ou não, com menor de 14 anos ao crime de estupro vale... Mas não vale tanto assim.
Leia o resumo da notícia no Estadão, mas a decisão pode ser resumida assim: se um adulto tiver sexo com um menor de 14 anos e este não tiver "experiência sexual" é estupro. Mas se esse menor já tiver essa experiência, se for uma criança prostituída, não há estupro e a lei perde seu efeito. Por trás disso está a opinião de que para se obter sexo de uma criança prostituída não é necessário se recorrer à violência, como se a própria exploração sexual infantil já não fosse em si uma violência.
Essa decisão é absurda por dois motivos: a) o ordenamento jurídico nacional define taxativamente o menor de 14 anos como absolutamente incapaz, o que vale dizer que nada pode compensar sua incapacidade, nem mesmo a experiência (se não, como traduzir o termo "absolutamente"?); b) a lei que equipara o ato sexual com menor incapaz ao estupro, independente de consentimento, tem a óbvia intensão de proteger a criança mesmo, e principalmente, quando se alegue que a criança consentiu (ora bolas, se ela é absolutamente incapaz, como um consentimento dessa criança poderia surtir efeitos jurídicos?).
Mas essa decisão não é só absurda. É preconceituosa. Ela esconde a opinião segundo a qual quem vive da prostituição não tem direto à proteção da lei, como se somente "pessoas de bem" (ou, para lembrar termo que há bem pouco tempo ainda se usava no Código Penal, somente "mulheres honestas") pudessem ser vítimas do crime de estupro.
Ora, ser prostituta, ou prostituto, ou mesmo ser o que alguns chamam de "promiscuo", não significa estar absolutamente à disposição de qualquer um, de qualquer forma, a qualquer hora. Pelo contrário. Quem se prostitui, ou quem oferece sexo a qualquer pretexto, também tem sua individualidade, suas vontades, seus sonhos, seus gostos, seus limites, suas exigências como qualquer outro ser humano. Não quer transar a qualquer hora, com qualquer um ou de qualquer jeito, pois também tem suas regras particulares. Portanto, existe sim o estupro de prostitutas (lembram-se daquele célebre filme da Judie Foster, "A Acusada", onde uma garota estuprada passa de vítima a acusada por ter "provocado o estupro"?).
Com efeito, o que diferencia o estupro da atividade profissional de uma prostituta adulta é o consentimento (e, claro, a ausência de violência). Se ela aceita a proposta de trabalho estamos falando de prostituição. Se ela não aceita, ou, se depois de ter aceitado, ela começa a ser violada em suas regras, estamos falando de estupro. Mas, e no caso da criança prostituída? Como ela pode consentir algo se ela é juridicamente incapaz? Foi para dar resposta a essa pergunta que a lei definiu: sexo com menores de 14 anos é sempre estupro. Mas parece que não é assim que nossos excelentíssimos magistrados pensam!
Então ficou assim: se alguém transar com uma "criança honesta", ou uma "criança de bem" (aquela que faz você lembrar seu próprio filho) é estupro. Cadeia no desgraçado! Mas se alguém transar com uma "criança prostituta", aquela que mostra na cara o sofrimento de uma vida pobre, que desde cedo foi violada por seus pais ou responsáveis e que entrou na "profissão", não por sonho, mas por necessidade (ou pela imposição de um adulto que a explora) e que em nada se parece com o seu filho, então não é estupro. "Alivia pra esse cidadão", que só queria um pouco de sexo e que pagou por isso. Esse cidadão que, afinal de contas, poderia se parecer com... Qualquer outro "cidadão de bem" de classe média!
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